a folha em branco
Faz tempo que não visito as páginas. Quer dizer — que não projeto nelas a luz pela janela da imaginação. Meus textos têm sido quase-diários, visitando angústias e acontecimentos. As portas estiveram fechadas e empoeiradas. Mas claro que, em minha escrita cotidiana, sempre se sobressai o aspecto poético de minha alma.
Não acredito em alma, mas é bonito falar dela.
Às vezes digo que nada assusta mais um criador do que uma folha em branco — the sheer possibility of infinity. Ao mesmo tempo, a página vazia é o suprassumo da existência: ali, se tem todas as possibilidades. Tudo e qualquer coisa pode ser vista ali. E o que o autor escolhe criar? O que surge de seus dedos? Não podemos escolher criar tudo, mas apenas o que os dedos e a mente veem. Nossos olhos estão limitados pelas próprias viseiras. O corpo, pelas próprias vísceras.
Hoje um amigo disse: “o maior cego é o que não quer enxergar.” Querer! Querer, eu quero, mas percebo que limito-me a ver apenas o que me é conveniente. A Razão, em certos momentos, se esvai, perdendo a queda-de-braço pro Sentimento. Mas o bom poeta consegue, dos rascunhos malditos de “qualquer-coisa”, conectá-los e tecer sentido e beleza. Qualquer frase pode ser um ponta-pé para o infinito.
Voltemos à folha em branco — o tudo. Cada frase tecida limita essas possibilidades infinitas. Encaminha-as na direção de uma só. Às vezes, hesito, não sei para que caminho levá-lo, mas aí, o próprio texto me direciona. À medida que essas frases limitam o infinito, elas também conjuram e inspiram uma nova realidade.
Posso seguir o meu corpo, como um bom materialista, acreditando que tudo é questão de ação x reação. Leis da física newtoniana. Energia não se cria, se transforma. O livre arbítrio é uma ilusão: o destino de cada partícula foi dada no momento do Big Bang. Crendo nisso, posso deixar-me levar. O Destino existe e não tenho nenhum controle do que acontece. Esse texto estava predestinado desde os meus antepassados.
Posso seguir meu corpo, como um bom nietzcheano. Jogo de acordo com minha vontade, com meus desejos, em busca de fortalecer a força de minha existência. Não nego os instintos, pelo contrário, vivo-os intensamente de acordo com os meus valores reforjados, ciente de que o mundo se encerrará em mim.
Aí, novamente, ressurge a questão da escolha: posso decidir algo, de fato? Se o mundo é ação x reação, a ação primordial é o Big Bang. O resto é reação; mas são reações que geram entre si, potenciais de ação. Se duas partículas lançadas se chocam, a mais pesada vai se sobressair à outra. Ao explorar meu potencial de ação, creio poder escolher.
Não sei se escolhi falar de Nietzche, ou se foi um pedido de meu corpo — estava já escrevendo o parágrafo seguinte. De qualquer forma, na medida em que eu o transformo em ideia, o livre arbítrio surge como possibilidades de eu me significar. Como uma página em branco, temos o infinito de possibilidades, e mesmo que o corpo e a cultura nos condicione, que nos dê um lugar ao nos jogar no mundo, que limite as linhas de nossa mão, podemos, assim como na escrita, transformar essas limitações que cada frase subsequente traz para construir novos significados.
O texto é um organismo. A mente é o motor e a máquina. A morte das possibilidades proporciona novas. Temas surgem enquanto se escreve. Cabe a nós percebê-los, significá-los e tecer a própria narrativa.
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quadro por Robert Ryman: White.